O Gérard e o Jazz

Por Duarte Mendonça

Tomei conhecimento do falecimento do Gérard, cuja grave doença vinha acompanhando, nos últimos anos, através de amigos comuns, no sábado 12 de Fevereiro último, no rodapé do noticiário das 19h da SIC Notícias.

Fiquei muito perturbado, triste e lacrimejante, muito embora já tivesse interiorizado que a terrível notícia chegaria um dia…e inexoravelmente chegou.

O meu intenso relacionamento com o Gérard, cuja personalidade brilhante, inteligente, culta, com uma capacidade oratória/dialéctica sem limites – um cidadão do Mundo – remonta à década de 40.

Por motivos familiares – o Gérard viria a contrair matrimónio com uma prima Beires Valle, do meu ramo materno – tinha eu os meus 18/19 anos, e já andava às voltas com o Jazz da época desde 1944, via audição das rádios nacionais e norte-americanas, que transmitiam, principalmente as grandes orquestras e a loucura do “boogie woogie” (que durou até 1950).

Já nessa altura (1946) eu adquirira, na saudosa casa Valentim de Carvalho do Chiado, o meu primeiro disco de 78 rpm, quebrável, que tocava 3 minutos em cada face, para o que utilizava um gramofone de corda, emprestado pelo meu amigo Rui Salinas, meu colega no liceu Camões.

Entretanto, ao ter conhecimento que o Gérard tinha casado com a minha prima Rita, e saber que fazia parte dos sócios fundadores do Hot Clube de Portugal, juntamente com Luís Vilas-Boas, Augusto e Ivo Mayer, Sena da Silva, Abel Manta, Luís e Fernando Sangareau, entre outros, providenciei imediatamente para entrar em contacto com ele, o que aconteceu com bastante rapidez.

Foi com uma grande expectativa e emoção que me preparei para receber, pela primeira vez, o Gérard, em casa dos meus pais em Cascais, em 1949-50.

O Gérard apareceu do alto dos seus dois metros de altura, possuidor de uma voz possante e bem colocada, carregado com o seu gravador de fita de aço Webcor, e os primeiros discos de 78 de Charlie Parker, na etiqueta americana Dial, de rótulo amarelo, e os últimos do novo quinteto de George Shearing, na etiqueta MGM, também ela de rótulo amarelo.

Passado algum tempo, surgiu uma oportunidade de conhecer a cave do Hot Clube na Praça da Alegria, mais uma vez pela mão do Gérard, com o pretexto de assistir a uma “jam session” com os primeiros “jazzmen” portugueses. Entretanto, ao descer a escada, o Augusto Mayer tentou barrar a minha entrada, por não ser sócio, situação que a presença e argumentação do Gérard rapidamente resolveram.

Esta importantíssima fase da minha vida, devo-a ao Gérard, e à música que pôs à disposição do meu ouvido, tendo sido determinante na minha continuada e convicta paixão pelo Jazz até aos dias de hoje.

Como é sabido, tornei-me Produtor/Promotor profissional em 1974, e sou, a grande distância, o mais antigo em actividade (80 anos – a antiguidade é um posto), e que maior número de músicos, consagrados e novas descobertas, tive o privilégio de apresentar no nosso País, através dos Festivais que co-produzi com Luís Vilas-Boas (Cascais Jazz) e, mais tarde, através da minha micro-empresa Projazz/DM-Produções, até hoje, na produção do Jazz Num Dia de Verão e Estoril Jazz.

Tomei a decisão de escrever estas linhas para publicação numa página do Programa Oficial do próximo Estoril Jazz/2011 (27 Maio a 5 Junho), o qual será dedicado à memória de Gérard Castello-Lopes e, por terrível coincidência, de George Shearing, que entretanto faleceu no dia 14 de Fevereiro, com 91 anos, uma das minhas referências e que me encaminhou para o “Bebop” (à época “Rebop”), estilo musical de Jazz, resultante da criatividade do génio que foi Charlie Parker, no qual foi acompanhado por Dizzy Gallespie, Miles Davis, Bud Powell, T. Monk, K. Clarke e tantos outros.

Igualmente constatei, em todos os recortes de imprensa acerca do Gérard que tenho vindo a coleccionar desde o dia 12/02, que o Jazz nunca foi referido como tendo sido um dos seus primeiros e apaixonados envolvimentos, tornando-se conhecido no meio por tocar no piano o “boogie woogie”, em voga na altura.

Entretanto, recebia em casa de seu Pai, onde havia um excelente piano de cauda, os amigos do Jazz, para altas sessões de “boogie woogie”, e participou em “jam sessions” dispersas e esporádicas, não só no Hot Clube como também noutros locais, nomeadamente no Wonder Bar do Casino Estoril, num sábado à tarde, com os músicos do grupo suíço Hazy Osterwald, que tocava com a “sonoridade Shearing”/clarinete no lugar da guitarra (Chuck Wayne), e a que tive o privilégio de assistir com o Jorge Costa Pinto, e talvez os irmãos Mayer, entre outras presenças de músicos profissionais e amadores, cujos nomes a memória do escriba já não alcança.

Entretanto, acompanhei a evolução da fascinante personalidade do Gérard através das suas múltiplas actividades, das quais fui tendo conhecimento ao longo do tempo, nomeadamente a esgrima e o mergulho aquático, até ao dia em que convidei para sua casa, então em Cascais (década de 50) os meus vizinhos e amigos, os irmãos Afonso Dias, dos quais o Carlos se revelou um fotógrafo muito interessado e brilhante, contudo, avesso ao mediatismo da época.

Esse encontro foi o princípio da carreira do Gérard como fotógrafo de excepção que todos conhecemos, e que diversos articulistas, entre os quais muitos amigos, fizeram eco, a propósito do seu lamentável desaparecimento.

Recordo com saudade a última vez que encontrei e confraternizei com o Gérard, na sua exposição fotográfica que teve lugar na Galeria de Arte do CCB em 16/01/2004.

Em anexo envio fotos e escrita do Gérard, que me foram enviadas nos últimos anos.

Paz à sua alma.

Cascais, 22 de Fevereiro de 2011

 Duarte Manuel Beires Valle Morais Castro Pinto Sarmento Fonseca de Mendonça