Uri Caine

A encerrar o Estoril jazz deste ano, o palco delimitado pela iluminação precisa, a dimensão justa e a excelência acústica do Auditório do Casino do Estoril serão ao mesmo tempo o foco de atracção e a situação ideal para disfrutarmos a arte instrumental de dois dos mais multifacetados e criativos músicos actuais, bem representativos de uma corrente hoje muito produtiva no jazz contemporâneo: a cena downtown novaiorquina.

Tanto Dave Douglas como Uri Caine, companheiros habituais de projectos próprios e de terceiros, representam de uma forma clara o perfil sempre surpreendente do músico de jazz de novo tipo:  aquele que,jamais se propondo ignorar as raízes das quais nasceu esta música de tão forte identidade, procura alargar as bases em que se sustenta essa identidade,apropriando-se de (e nela incorporando) ideias musicais e sinais culturais exógenos, uma perspectiva que se traduz em obras muito diferenciadas a que ambos deram origem nas suas respectivas carreiras.

É por isso frequente ouvir Dave Douglas homenageando grandes personalidades do jazz clássico-moderno em projectos próprios e sempre caracterizados por um cunho muito pessoal, embora em configurações instrumentais há muito consagradas nos nossos hábitos auditivos do jazz;  participar noutros contextos conceptuais provenientes de universos culturais aparentemente afastados, como a prática de um certo jazz contaminado pelas melopeias e padrões rítmicos próprios das suas raízes judaicas, aliás comuns a Uri Caine;  ou deixar-se contaminar pelas correntes mais próximas da música erudita de origem europeia, em trios ou quartetos com um instrumentário muito sui generis.

Muito do que foi dito a propósito de Dave Douglas se aplica a Uri Caine, embora com resultados diferentes e segundo umapraxis bem diversa, sobretudo no que toca à comum tendência para a multiplicidade de projectos instrumentais aos quais ambos vêm dando vida própria. Embora se possa e deva sublinhar, no caso do pianista, que mesmo em meio de uma pulverização estética tão marcante, a sua personalidade é susceptível de uma segmentação mais vincada, se a compararmos com a do trompetista, no sentido de que, ao escolher um determinado trajecto conceptual, dificilmente se deixa desviar por outros atalhos.

Por isso o encontro entre estas duas fortes personalidades, no contexto de um duo  (ao qual, não por acaso, se aplica o plural“duos”, deixando desde logo adivinhar situações musicais que se justapõem ou se entrelaçam),  é susceptível de nos proporcionar visões múltiplas de um jazz em constante mutação.